Você é um ser sonoro
Já parou pra pensar qual é o som mais marcante da sua vida? Um dia desses me fiz essa pergunta e logo encontrei a resposta. Eu sou mãe, então seria automático dizer que foi o primeiro choro do meu filho, mas aquele era um som previsível (e muito aguardado). É claro que foi emocionante, mas o que realmente me marcou veio poucos meses depois; este eu posso ouvir até hoje.
Quando o meu filho tinha uns dois meses, estava dormindo numa cama bem alta ao meu lado. Por conta das noites mal dormidas e cansaço acumulado (quem já cuidou de um recém-nascido vai entender) não percebi que ele ficou na beirada. Acordei com o barulho da queda dele, o pior som que já ouvi na vida. Soltei um grito de pavor, de quem sabia que a cria estava em perigo. Quer saber se ficou tudo bem com ele depois da queda? Não sofreu nenhum arranhão. Já eu, chorei por algumas horas.
Ao ouvir o primeiro episódio do podcast Ser Sonoro, entendi que o que gritou naquela fatídica noite foi o meu lado primitivo, que reconheceu naquele barulho da queda do meu filho uma grande ameaça. Procurei o criador do podcast, Fernando Cespedes, para entender melhor a relação entre alguns ruídos e os nossos instintos. Segundo ele: “As nossas reações mais instintivas (como o medo, por exemplo) ocorrem sempre na presença de um fator externo, muitas vezes uma ameaça. Essa ameaça pode aparecer de várias formas e uma delas é o som. Um trovão ou o som próximo de um predador representam, para nós, a própria ameaça de ser atingido pelo raio ou pego pelo predador. É como se o nosso corpo se antecipasse para se preparar para algo muito importante. Mesmo antes daquilo acontecer, já estamos preparados, por isso nosso coração dispara, nossa pupila dilata e a respiração fica ofegante”.
Aprendi que a capacidade de identificar um som (e de reagir a partir dele) também é considerada uma característica evolutiva. De acordo com o Fernando: “A evolução tem tudo a ver com adaptação ao meio ambiente, isso inclui perceber o que está à nossa volta e reagir a isso. Por exemplo, se um indivíduo tiver dificuldade de escutar o som da água corrente na floresta, pode acabar morrendo desidratado. O mesmo vale para quem não conseguir escutar a onça a tempo (pois quando ela estiver frente à frente, já será tarde demais). Evolutivamente falando, quem escuta bem os sons do ambiente está mais adaptado a ele e, com isso, têm mais chances de deixar descendentes. Mas isso vale também para quem vive nas cidades: para atravessar uma avenida movimentada não basta olhar para os dois lados, é importante escutar com atenção”.
Ainda neste primeiro episódio do podcast Ser Sonoro ( incluir link) , podemos ouvir o exemplo dos sons emitidos por macacos Guigós, que, no Brasil, são encontrados na Mata Atlântica de Sergipe e no Norte da Bahia. O Fernando explica: “Os Guigó são uma das primeiras espécies conhecidas a avisar seu próprio bando da posição de predadores (que podem vir dos céus, como águias, ou do chão, como cobras). Isso é feito usando sons muito específicos que chamam a atenção de todo o bando, colocando-os em alerta máximo. Não é coincidência que sons muito parecidos foram usados para nos causar medo em uma das trilhas sonoras mais conhecidas do cinema (ficou curioso pra saber qual é essa trilha? É só ouvir o podcast). Isso mostra que a história da nossa escuta está conectada com a de outras espécies, já que todos habitamos as mesmas paisagens sonoras durante centenas de milhares de anos”.
Dica:
A primeira temporada do Ser Sonoro tem 12 episódios, todos ricos em referências auditivas.. Você vai entender, por exemplo, porque se sente relaxado com sons que remetem a água, como cachoeiras, fontes e ondas do mar; e vai se sentir dentro de uma festa do povo Maori, da Nova Zelândia.
O podcast é fruto de mais de dez anos de pesquisa do Fernando, que é doutor em comunicação sonora. O podcast tem o objetivo de divulgar as informações obtidas ao longo desse tempo, de uma maneira acessível e divertida. Segundo ele: “Como o tema da pesquisa era a relação entre a escuta e a música, a ideia de transformar o trabalho num podcast foi quase automática. Na verdade, desde o começo da pesquisa os sons já estavam presentes, mas como o formato exigido pela Universidade é o escrito, esse espaço para criar e manipular sons como forma de fazer pesquisa acadêmica era restrito. Com o podcast, pude explorar mais esse lado e deu super certo”. Deu mesmo, Fernando.